Reflexões sobre a série “Oposições polares”

Quando comecei fazer xilogravuras, (1972) as peculiaridades da madeira e a cor ainda eram secundárias, estava mais preocupada com os aspectos formais das imagens. As matrizes, aos poucos, começam a ser  recortadas e  impressas em cores sobre o espaço do papel. As imagens apresentam estruturas simbólicas fragmentadas, associadas a uma temática intuitivo-vivencial.

Gradativamente, começo a perceber na superfície da madeira, as grafias dos seus veios,  suas texturas e as suas resistências. O que  era apenas um suporte para minhas ideias, torna-se matéria com vida, com seus rituais. Há uma troca entre o calor da madeira, nas suas fibras, com  a energia do meu corpo. Também começo a trabalhar sobre uma única matriz todas as cores.

Durante um período de oito anos, (1983-91) investigo o processo técnico da matriz-perdida, que me permitiu desvendar e aprofundar a compreensão da cor gravada. Descobri que a cor não está na superfície, mas é algo que vem de dentro, e por isso não pode ser acessório decorativo. Em cada impressão a cor é eliminada e preservada pela  sobreposição e gravação.

Já a pesquisa gráfica das oposições polares (iniciada em 92) se desenvolve a partir de um processo mais “direto”. Abandono o rigor dos registros precisos do processo anterior, para trabalhar com as permutações das matrizes, impressas em sobreposições de cores. Também inverto o procedimento de usar uma só matriz, mas utilizar várias matrizes e um número limitado de cores para construir uma única imagem. Estabeleço limites de cores, (1 vermelho quente, 1 vermelho frio e 1 roxo) mas utilizo um número ilimitado de matrizes para construir uma imagem, mas sempre sintonizada com a ideia de gerar relações de dualidades polares nas imagens.

O fazer uma gravura sempre me remete ao duplo, isto é, pensar em dois momentos opostos e complementares. Os primeiros sinais encontro no momento em que começo a dialogar com a matriz: no intocado e intocado, (cortes e não cortes), cheios e vazios: de um lado, a matriz é geradora e de outro, condutora, ela introduz os seus sinais gravados sobre o outro, o papel receptor.

Assim, o meu interesse nesta pesquisa está centrado em duplicar o único. Ou seja, busco a duplicidade da matriz e não a sua multiplicidade. Nesse processo o gravar e o imprimir são simultâneos e sequenciais, conferindo realidade às polaridades opostas das imagens. Trabalho com as questões inerentes a gravura: acumulação, transposição, duplicação e repetição

Ao mesmo tempo, as imagens não são resultantes da racionalidade de um desenho, são mais intuitivas. Mas construídas e geradas a partir dos meus resíduos de memória, ou seja,  a essência disso tudo está  impressa nas minhas “matrizes inconscientes”, no meu universo imaginário.

Neste ritual de inversões e oposições, entre cheios e vazios, constato que o vazio, não é um nada, mas contem uma outra potencialidade. É um “vácuo vivo” que pulsa num outro ritmo. Perceber isto, foi fundamental: os vazios (os cortes e recortes) de uma matriz se interpenetram com os cheios da matriz sobreposta em cada cor impressa, o que é essencial na distinção dos tempos e espaços das polaridades opostas.

Ao mesmo tempo, questiono o meu trabalho. São as matrizes gravadas ou são as cores que elaboram e estruturam a imagem? Me pergunto: ?a cor na xilogravura pode gerar uma matéria gráfica ou o depósito de camadas sobrepostas pertence ao domínio da pintura? E a proposição de limites técnicos pode gerar correspondências poéticas de oposições polares?

As inquietações duais provém desde que eu comecei a desenhar uma concha até se transformar numa figura humana. Neste percurso questiono a imposição dos limites? A pele pode ser o limite entre o dentro e o fora? Quais as outras possibilidades de penetração? As cores também podem suscitar simbolismos duais e opostos entre o masculino e o feminino?

É quando surge Pulsações I. É a primeira imagem. Quando a realizei, surgiu uma grande oval vazia no centro. Este vazio, causou um grande impacto! ?O que poderia significar?  É semente? É útero?, É concha? É feminino? É masculino? Ou seria tudo isto? A partir desta gravura, geram-se todas as outras…

Também a cor se associa às significações simbólicas: o vermelho considerado símbolo de vida, possui poder, intensidade e também a dualidade: de um lado, externo, masculino, incita e seduz e de outro, interno, é quando inverte a sua polaridade, feminino, detém o limite da vida/ morte/ vida.

Nestas gravuras, quando o vermelho se define espacialmente nos direcionamentos verticais, tem uma vibração centralizada, configura-se no princípio masculino (Yang), invade o espaço através das pontas e retas. Em outras imagens, age interiormente, num movimento circular, dissipando-se nas tonalidades e nas curvas, desvela-se feminino (Yin).

Também os roxos e os violetas possuem qualificações duais: o escuro é relacionado ao velado, ao interno, em outros momentos, suscitam as passagens silenciosas.

Neste pulsar, articulo o equilibrar e o desiquilibrar da cor através impressões e modulações das matrizes, ora a cor estruturando a forma, ora a forma estruturando a cor.

 

A série Oposições polares subdivide-se em 5 momentos:

  1. Pulsações – nascem simbolicamente estruturas femininas, são as conchas-vulvas, nas suas formas ovais – Estas formas ovais aparecerem configuradas através de espaços cheios, em outros momentos, buscam o espaço, sinalizam o movimento entre certezas e incertezas, do caos e da ordem.
  2. Passagens – Nestas imagens coexistem o movimento gestual das manhcas e a impressão das matrizes/ o fluido e rígido – São as conchas-úteros- internos, ritmos circulares, e ainda entrelaçando-se simultaneamente o dentro e o fora, o circular e o vertical.
  3. Em busca do centro – nestas imagens há um caminhar pelo labirinto, onde durante o trajeto persigo a trilha em busca da entrada ou da saída. É o desejo profundo de visualizar o próprio centro, não o geométrico, mas o sagrado. Neste trilhar, manifestam-se as dualidades do sim e do não, entre as horizontais e verticais, e, no momento em que são reconhecidas, reecontram-se novas totalidades.
  4. Verticalização – a vertical já se insinuava entre as curvas e extensões dos vermelhos das imagens anteriores. A partir destas gravuras, a vertical também se afirma espacialmente e, agora ocorre a inversão: são as curvas que se insinuam entre as verticais. Também as matrizes possuem um formato maior, já não uso tantas matrizes-fragmentos. A imagem de Verticalização III, causou-me o mesmo impacto que a oval vazia de Pulsações I. Aqui não é um vazio, mas um cheio, resultando da justaposição e sobreposição das cores. É um vermelho incisivo, onde uma flecha aponta ora para cima, ora para baixo.
  5. Objetens – estas imagens me remetem analogias simbólicas do sagrado e do profano, objetos do cotidiano primitivo, na forma de remos, lanças, totens. Anunciam uma nova trilha…………..

 

Esta série totaliza um ciclo para mim: o ovo, a semente, concha-vulva-útero, as passagens (o dentro e o fora), a busca do centro (sagrado), verticalização (a afirmação) e objetens, (síntese entre o sagrado e o profano).

Assim, neste fazer e desfazer conceitos a partir de um centro descentrado, as normas e as regras são questionadas. Os limites propostos não significaram fronteiras rígidas, mas ao contrário, permitiram a elasticidade dos contornos, mas sem destruí-los, preservando a identidade das matérias envolvidas no percurso. Acredito que a imagens perfazem a trajetória de um processo de vida.